segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Viva a concorrência!

Já disse aqui: é uma bobagem não votar em Dilma com base na convicção de que ela vai convencer o Congresso a legalizar o aborto.
Dilma não tem poder para isso; e se tivesse não quereria ou não daria prioridade para isso.
Muita gente denunciou isso como uma entrada indevida da religião no âmbito da política.
Ocorre, porém, que há um outro motivo, menos nobre, para muitas pessoas quererem manter a religião longe das eleições: a repulsa à concorrência.
Explico.
Desde que não há mais o sagrado originário, aquele, por exemplo, do fervor e do delírio extremos do canibalismo tupinambá, as culturas desenvolveram formas atenuadas do sagrado, que eu chamo de sagrado vicário.
Uma dessas formas é a religião.
Na religião, não ocorre o sacrifício (que, literalmente, significa fazimento do sagrado) com a mesma intensidade encontrada no sagrado originário.
Na religião, portanto, o sacrifício é de médio ou baixo perfil, um sacrifício mitigado.
A marca do sagrado é a autodoação, a autoentrega; no sagrado vicário, ocorre também a autodoação, embora atenuada.
Na autodoação, o juízo ou não conta ou conta pouco.
Assim, no sagrado vicário da religião cristã, por exemplo, as pessoas se doam a Cristo, que, por sua vez, se doa às pessoas, porque creem que é isso que devem fazer, não pelo fato de seu sóbrio juízo lhes indicar esse caminho, mas sim pelo fato de crerem intensamente que tem que ser assim.
Mas o sagrado vicário não ocorre apenas na religião; ocorre no esporte, no sexo, no trabalho, na política.
Na política, você pode se entregar a uma ideologia, como o neoliberalismo.
Na política, você pode também se entregar a uma pessoa, como no lulismo.
Quando o cristianismo invade o âmbito da política, com sua veemente condenação do aborto, muitas pessoas reagem porque sentem a presença concorrente de outro sagrado vicário.
É como se disessem: cristianismo aqui, não! Já temos o neoliberalismo!
Ou: Cristo aqui, não! Já temos Lula.
Como cada sagrado vicário possui os seus próprios dogmas (o cristianismo possui os seus; o neoliberalismo e o lulismo também), os representantes de cada um dos outros sagrados vicários lutam para que seus sistemas dogmáticos não percam espaço.
Bem entendido, é como se o cristianismo fosse um partido político e é como se o neoliberalismo e o lulismo fossem religiões.
A turma da política grita: opa!, sai fora, religião, cada qual no seu cada qual.
Só que eles se esquecem de uma coisinha: são todos da mesma turma, a turma do sagrado vicário e do dogmatismo. Cada um a sua maneira, mas com muita coisa em comum.

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