sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Meia classe média

Nelson Rodrigues disse: o ser humano é de classe média.
Nelson Rodrigues era um gênio, e como gênio estava além e aquém do pensador.
Um gênio alcança a verdade mais rápido do que o pensador; mas o pensador a elabora melhor.
Se, além do insight do gênio, Nelson Rodrigues tivesse a elaboração do pensador, teria dito: o ser humano civilizado é de classe média.
A civilização é a cultura criada pelas cidades, nasceu com elas.
Como cultura, a civilização não é melhor nem pior que as culturas aldeãs ou tribais; ela é apenas a cultura própria do meio urbano.
Se a civilização nasceu junto com as cidades, as cidades nasceram junto com a classe média.
Nunca houve cidade sem classe média, ainda que uma classe média pequena, dependente, embrionária.
Nunca houve também classe média sem cidade, ainda que uma cidade com uma certa cara de aldeia.
Civilização, cidade e classe média são enredo, palco e personagem da mesma história.
Com o passar do tempo, muitas cidades, com sua classe média e sua cultura civilizada, se tornaram democráticas e republicanas.
Criou-se, na longa linha da história, uma identificação profunda entre civilização, democracia e república, a ponto de muitas monarquias, de tão civilizadas e democráticas, terem se tornado também, digamos, republicanas.
A classe média, por seus vínculos profundos com a civilização, a democracia e a república, tende com frequência contra os privilégios.
No Brasil, uma parte da classe média é contra os privilégios na política, daí sua aversão aos políticos corruptos e parasitas. Essa aversão é tão forte que algumas vezes se confunde com aversão à política, o que é um absurdo, uma vez que contraria o espírito civilizado, democrático e republicano da classe média, que depende da participação política para se afirmar.
Em 1964, por exemplo, em parte por aversão à política e aos políticos, um pedaço da classe média brasileira apoiou o golpe militar.
Outra parte de nossa classe média luta contra os privilégios socioeconômicos, responsáveis pela existência de marginalizados e excluídos. Essa luta é tão intensa que algumas vezes abdica do direito à liberdade em nome da igualdade, o que é um absurdo, uma vez que contraria o espírito civilizado, democrático e republicano, que precisa de garantias contra Estados repressivos para se afirmar.
Até hoje, por exemplo, em parte por abominar privilégios socioeconômicos, um pedaço da classe média brasileira admira a ditadura cubana.
Tomara que essas duas pontas do espírito da classe média se aproximem mais na política brasileira.
Tomara que, no futuro, os que não conciliam com o antidemocrático, antirrepublicano e, apesar de seus versos, incivilizado Sarney venham a ser sempre os mesmos que aplaudem a diminuição das desigualdades sociais.
E, pra você, o que falta dizer?

4 comentários:

  1. Caríssimo,

    Como sempre, você fere a questão no limiar da cirurgia e da construção, ou seja, do micro e macro. Só teria um adendo a fazer: é que a civilização é autosuficiente ou autoreprodutora: se não for o Sarney, teremos outros que farão a mesma coisa. A sorte é que a consciência universal evolui e a gente passa a exigir dos diversos "sarneys" que vão surgindo melhorias nas condições materiais de vida.

    Abração,

    Gil

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  2. Meu caro amigo, quantas saudades. Você, como sempre e com toda a pertinência, adota uma postura mais dinâmica e flexível. gd bç.

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  3. Bom, talvez porque tive um grande doutor ao meu lado por um bom tempo ... (rs rs rs) ... De qualquer maneira, cada ausência de uma negativa expressa é sempre um alento a esses sonhos que não teimam em nos largar ...

    Abs.,

    Gil

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  4. Não largue o sonho, que ele não te larga. Vc vai conquistar tudo que almeja.
    gd bç

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